terça-feira, 9 de dezembro de 2014

"Como se fosse"

Em alguns dias da semana eu almoço a mesma empada de legumes, no mesmo restaurante. E quando esta opção está em falta peço por alternativas que não contenham carne na composição. Foi o que aconteceu no dia em questão.

Sempre foi comum ouvir dos atendentes, onde quer que eu fosse, propostas que de tão incoerentes soam engraçadas. "Algum salgado sem carne? Temos sim. Tem este de frango, este outro de atum e este aqui de presunto", me informou a senhora simpática numa lanchonete. A naturalidade com que se faz a exclusão de alguns corpos do conceito de "carne" sempre me incomodou, pois evidencia a distância a que o indivíduo está de enxergar sequer o superficial: "carne" não é sinônimo de "gado", e sim de "corpo", qualquer corpo, em qualquer circunstância.

Mas nesse dia, então, sem empada, pedi por outra opção sem carne e o senhor sorridente do tal restaurante me ofereceu um assado de queijo com presunto. Hesitei por alguns segundos pelo "tilt" cerebral e enfim ele deu-se por conta, rindo. "Ah, desculpe! Presunto é como se fosse carne, pra você, né...".

"Como se fosse". Devo ter dado algum sorriso meio bobo, não lembro, mas é o que faço quando fico sem palavras. Nem mesmo lembro o que comprei, mas dei as costas e pelo caminho fui pensando. "Como se fosse". Tomei um café, fui pro trabalho. "Como se fosse". Peguei um ônibus, fui pra casa. "Como se fosse". Tentei lembrar de definição mais importuna que já tivesse ouvido, mas nenhuma se comparava.

"Como-se-fosse" definitivamente foram as três palavras que quebraram minha postura. Foi como se nelas coubessem espremidos todos os equívocos dos animais humanos a respeito dos animais não-humanos. Como se, embora curtas, possuíssem peso suficiente pra esmagar toda minha pequena grande luta contra esses equívocos (pra não chamar de preconceitos). Como se reduzissem um fato biológico a uma mera ilusão pessoal, já que era "como se fosse, pra mim".

Esclareço que a questão aqui não é o ato em si de comer carne ou não. Esse seria um assunto bem mais nebuloso e complexo de tratar, mesmo depois de se esclarecer fatos básicos. A questão aqui é que até mesmo esses fatos são ignorados. O quanto a visão míope acerca do que é carne, do que é corpo e do que é animal está enraizada nos nossos conceitos (nós, animais humanos). Tão enraizada que, quando alguém apresenta qualquer interpretação diferente (como, por exemplo, sugerir que um porco também seja feito de carne), ela é automaticamente classificada na exceção do "como se fosse, PRA VOCÊ".

Vivemos acostumados a excluir animais humanos do conceito de Animal. Dividimos também o conceito de animal em hierarquias imprecisas nas quais uns são mais animais que outros. Uns são adorados, outros são reduzidos ao status de carne. E outros, ainda, não são nem assim reconhecidos, dependendo da "porção" em que seus corpos estão dispostos. Um porco se reduz à carne-de-porco, quando espetado inteiro sobre a brasa. Mas um porco fatiado minuciosamente entre alfaces e pão francês, um frango desfiado num salpicão ou um peixe triturado em patê se descaracterizam ao ponto de seus corpos nem mesmo serem reconhecidos como “carne”. Por alguma razão, apenas o gado permanece com tal definição, mesmo quando moído. Será pelos seus 300 quilos? Ou pelo seu sabor mais atraente? Ou pelo seu consumo mais disseminado? De qualquer forma, o que são então esses outros animais menos relevantes, que nem mesmo pra "carne" servem? São farelos de coisa nenhuma? Serragem cozida com Sazón?

Comecei a questionar quantos outros fatos, dentro de outros contextos, boiam na superfície do "como se fosse", empurrados à margem da razão por uma cultura equivocada, seja intencionalmente ou não. E percebi que essa cegueira é tão volátil, tão comum e tão naturalizada que me vi apavorada. Se trata também do gay que exige direitos “como se fosse” igual ao heterossexual, da prostituta que pede respeito “como se fosse” digna dele, do infrator que denuncia o abuso policial “como se fosse” inocente para isso, de todos os indivíduos rejeitados que não pude me dar conta ainda, chegando perto de serem “quase alguma coisa”, ou nem isso.

Desculpem, mas não me parece haver lógica em referir-se a fatos "como se fossem" fatos. Porque eles simplesmente o são. E não o são para mim, nem para ninguém, provavelmente. São por si próprios, são porque são e ponto final, independente de enxergarmos isso, de admitirmos isso. Mas eu espero que realmente possamos enxergar e admitir.

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